Sunday, July 29, 2012

hospedaria NOVO MUNDO e os meus dois amores



É nessa ruela escura ou amarela dos candeeiros da baixa que está a hospedaria Novo Mundo.
O frio corta-me os pés e as tuas patas arranham-me as pernas.
Naquele beco misteriosamente encantado pela meia luz tenho sempre vontade de entrar… porta fechada… e de ver o outro lado.
Rodeada de orquídeas e de coachares. Viajo pela curiosidade. Então contemplo montanhas com um copo de vinho branco.
Será onde vão as prostitutas da baixa? Ou viajantes de pé descalço… calçados de botas velhas porque está frio.
Pára de me morder os dedos dos pés que estão estragados e doridos. Cobre-me antes de beijos.
Baratas no chão não incomodam na Ásia. Becos e etc… E luzes foleiras por amarelada luz ou néons demasiado azuis. Adivinha-se uma recepção tacanha com balcão de couro coçado.
Estico o cabelo ao espelho e pinto os olhos de preto como que a afugentar espíritos. Mas na igreja não consigo repetir as palavras. E apercebo-me que não consigo… ser religiosa… e queria tanto…
Corta-me queijo amor com compota de morango feita pela minha Mãe para o meu Pai. E dá-me carinhos, acaricia o meu cabelo de olhar meigo para mim. Como se nos tivéssemos conhecido há pouco… e eu tivesse uma flor para ti.
Deste-me um colar de contas de plástico verdes… ainda estão ali, num copo, à espera que eu as enfie num fio novo.
E tu dormes no meu colo e eu não me mexo pois este momento é tão imensamente especial… até porque vais crescer e não vais caber mais aqui… serei eu no teu colo.
No Novo Mundo serias um vadio que cheira as beiras das calças e que foge escorraçado por uma vassoura cheia de rastas, noite cerrada que me fechas em casa .
Bebé querido que já pesas tanto e te contorces mas que és o meu ursinho de pelúcia. Vou entrar no escuro e não sei o que sairei de lá.
Mas dormiria no Novo Mundo se me perdesse por aí.

Wednesday, July 25, 2012

Zilda Clara Marinho, uma homenagem final TOMO1


Não quero homenagear a morte. Mas parece tornar-se frequente…

Foi a ultima vez que entrei no Lar. O cheiro a gente de idade… perdoem-me… o cheiro a Lar incomoda-me profundamente. Muito mais do que o cheiro que senti a primeira vez que entrei no Hospital de Santo António pela mão da minha Mãe, era miúda pequena. E que agora já não sinto… qualquer tipo de cheiro.

Não tive que voltar a entrar na “enfermaria”, onde uma mesa cheia de cadernos infantis para desenhar sempre me revoltou. Onde consegui perceber que a vida perde o sentido mas continua presa a um corpo que precisa de cuidados… ou apodrece.

Talvez as minhas palavras sejam algo violentas…

Na última missa estávamos nós os quatros e mais dois de nós e mais uma amiga e várias senhoras de cabelo branco. Não imagino quem fossem… talvez simplesmente mulheres católicas com medo do fim.

O caixão estava fechado e tive pena de não a ver deitada, imaculada… como às vezes parecem conseguir pôr os mortos por baixo de um véu que esconde as imperfeições. Tive pena de não lhe tocar uma ultima vez, embora mal lhe tenha tocado as ultimas vezes.
Fico feliz por ela ter deixado este fim infernal de vida. Lamento imensamente que o tenha tido.

Não fiz o que lhe prometi… tomar conta dela até ao fim. Só lho prometi uma vez e sem certeza. Odiei o Lar que escolheu, odiei o cheiro, os cadernos de pintar, as faixas que amarravam os velhinhos às cadeiras para não caírem, aquela sala cheia de seres ausentes que respiravam e que tanto o faziam que o ar era pesado, as roupas que desleixadamente lhes vestiam, como se já não interessasse.

Existiam uns seres de luz… poucos mas existiam. Familiares que não desistiam. E também esses me faziam sentir culpada. Tu eras um deles e por isso só lá consegui ir contigo. Felizmente visitaste-a muitas mais vezes do que eu. E ainda bem que o fizeste pois eras o menino dos olhos dela. E certamente, algures na sua demência, ela sentiu a tua presença.

Eramos cinco no cemitério, sem ninguém da família. Despedi-me de um caixão fechado num cemitério dos subúrbios, rodeado de prédios e cheio de lajes cinzentas,  que não faz dele o cemitério mais aprazível… mas em quase todas se viam flores frescas e portanto um toque de amor.

Eu vou voltar aqui Zilda e vou pôr flores frescas para ti.