Thursday, March 06, 2014

Ovelhas e afins




O medo da loucura ainda me surge.
Menos, muito menos.
Sobrepõe-se a rapidez com que vivo.

A não ser que Deus se esqueça de mim.
Então o caos instala-se e eu perco-me num rodopio de circunstancias que não sei viver.
O medo nem tem tempo de se instalar.

Como construções de areia que desabam com uma pequeníssima onda.
E um jogo de dominó de peças mal colocadas.
Que quase se pudesse pensar que era de propósito

Um desabar tão natural e que começa a ser tão comum que me lentifica, em vez de me assustar.
Que me revolta e me faz chorar intensamente.
Chorar mesmo, a ver se a dor passa, e passa, com o cansaço.

Para não me apanhar em teias deprimentes de sofás e afins, saio muito cedo.
Tão cedo que só vejo cabras e ovelhas e uns tantos carros apressados.
Assim despejo-me em imagens que nunca vejo.

Por vezes fotografei-as, a essas imagens, cheiram a estrume.
Não as consigo reter.
Fogem-se-me entre cheiros e memórias.

Não quero ver carros nem pessoas nem avenidas nem lojas nem coisas relacionadas com cidades nem com a vida que eu levo.
Vejo flores e adoro flores.
Vejo ovelhas malcheirosas e adoro ovelhas.

Ando até não poder mais para que esse caos que esse Deus deixou que chegasse a mim se vá embora, cansado.
Porque eu não me vou cansar antes dele.
Quando em casa contigo, sossego.

Wednesday, September 11, 2013

Chuva



Mal te vejo entardecer, de tantas lágrimas...
E escureces com meia dúzia de luzes alaranjadas que ficam pelo caminho.
Eu choro, choro muito, em quantidade de lágrimas, choro em quantidade.
Como se chovesse.
Tudo se embacia, até o papel e borrata. 

Começa assim.

Gostava de ter um lagarto verde que andasse sempre no meu ombro.
Seria daquelas pessoas "estranhas" a quem ninguém se quer chegar.
A não ser que vivesse em Beirute.

Entre chorares e arranhadelas há uma parede branca que serve de tela.
E terra nos pés que nos dizem ser real.
Se o pão não estivesse quente tudo poderia ser duvidoso.
Mas amo-te.

Num silencio atroz, a tua voz arranhada estremece.
Tens os head-phones. E estas noutra dimensão.
Como se ao longe cantasse uma tribo.
Ou como se num quarto silencioso eu te cantasse uma canção ao ouvido, para nem as paredes ouvirem.

Depois de um carrossel em que o dia entardece suavemente, um dia em que alguem faz pausa no entardecer, eu estou aqui.
Uma luz inclinada, um mar enorme algures, mas não aqui. Não vivo sequer junto ao mar.
Entretenho-me a ouvir os ecos da festa da junta de freguesia. 
O sol esta a uma casa de se por e eu vou morrer de frio.

Se cantares por aí ouvirei o teu eco, como se enfiasse a cabeça dentro de um trompete. 
É por isso que percorro as ruas estreitas a pé.
É por isso que vou parando aqui e ali, a ver se espreitas de uma janela. A ver se umas dessas casas amarelas é a amarela que eu quero.
A ver se essas ruas todas iguais se tornam diferentes pelo menos por um instante...
Aquele em que eu atravesso a esquina.

A tua música tolda-me o amor e bloqueia-me de arrepios.
Apareces em instantes.
Como uma distracção apetecível.
Um Hang Drum perdido.


Assim tenho estado eu em fuga para que o Mundo em mim não repare.
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Friday, June 28, 2013

FESTIVAL



Estou quente mas uma brisa lembra-me que fiz bem vestir-me como se fosse para as montanhas.
Assim o vento só me toca na pele queimada e ainda assim dói.
Como é que é possível nunca teres ido a um festival?
O sol está a pôr-se lentamente lá para trás dos arbustos e dos montes de relva, a esta hora cheios de gente deitada e reclinada.
E não há enchentes de gentes.
Então eu flutuo. É neste momento que tento memorizar e não consigo.
Tudo flutua, a beleza é incomparável, sinto-me feliz e sinto-me viva.
Sinto toda a subtileza à minha volta.
Sinto-te a ti e tu ainda nem chegaste.
Sinto tudo que me envolve como se me fundisse com a envolvência.
Sinto-me feliz.
Sei que não vai durar muito mas sinto-me feliz.
Cada nota toca-me  e cada bocado de mim estremece.
Eu flutuo por cima de mim.
Sou muito mais do que só eu.
Sou tudo o que me rodeia.
Blur.
Não há muito mais a dizer.





Saturday, June 22, 2013

Magnólia meu amor


Enquanto tudo em ti é colorido, a baixa da cidade é cinzenta.
Cinzenta com árvores de inverno, nuas.
E por isso as magnólias. Por isso e porque me lembram sapos a cair do céu.
Tantos , tantos que me isolam da realidade.
E aí sinto-me em segurança.
E se o tempo parasse as folhas não lhes cresciam nem as pétalas lhes caíam.
Permaneciam assim, as únicas flores brancas e roxas no cinzento do Mundo.
Perfeitas como cálices, grandes como laranjas.
E chove intensamente, deixo-me adormecer pela estrada e pela chuva e pelos limpa para-brisas.
Aqui sinto-me protegida.
Pásso por elas de pétalas caídas.
A dois centímetros está o vidro e a chuva.
Eu já não tenho fuga.
A dez centímetros está o vidro e a chuva… em casa.
Sinto-me quase protegida se desligar os sons.
Chove… monotonamente e sossegadamente.
Tudo se mantém verde e molhado  e eu mantenho-me não molhada protegida por um vidro.
As magnólias fogem-me. Começam a nascer folhas verdes e as pétalas no chão despedem-se de mim… mas eu não quero esta despedida.
Não quero esta despedida.
Se a simpatia provoca simpatia… porquê tanto medo.
Olho pela janela, do lado de dentro.
Tu estás do lado de lá.

Os meus olhos descaiem e desistem e eu encolho-me, desprotegida.

Friday, October 26, 2012

Momentos de tristeza



No outro dia sonhei contigo e com pimenta e tu morres assim.
Quando me despertas a curiosidade da tua loucura é porque me fartei do ser humano. E só este cão vadio me desperta amor.
Não há luzes nem conversas que me levem de ti.
E em breve voo para longe. Já não nos perdemos por aí…

Temos uma amiga doente vamos-lhe oferecer uma arvore.
Alice… tão linda que és… que não tens o direito de morrer assim.
Acredito que nos vamos ver.
Sou mais católica assim?

Hei-de ter 85 anos e de ver a Qaaba. Por teimosia.
Hei-de dormir numa cabana sobre o mar… Por capricho.
E se vais ser minha filha é por amor.
Visita-me e toca piano a ver se a luz nos alcança. Podes ter olhos azuis ou castanhos.

Vamos por aí sem destino, sem volta, para onde nos levar o mundo… 
Se fossemos os dois… Mas e se formos quatro ?
Tomarás conta de mim? Quando eu desesperar de choros e identidades.
Vais-me buscar um brinquedo ao teu cesto?

Está frio. Então perco a razão como um cérebro que gela.
Perseguida por monstros, engolida por eles.
Não podendo deixar de sorrir quando me cruzo com os teus olhos cor de amêndoa.
Um beijo pela tua simpatia… se te sentires capaz.
Os cravos túnicos nem se dignaram a espreitar.
Fico sem flores para o meu altar.
Ouvem-se os teus soluços e silêncio prolongado. E por aí fora.
Acontecimentos sem valor.

As toucas de flores com que a minha mãe tomava banho no mar.
O sorriso do meu Pai.
O meu fato de banho ridículo e demasiado enorme para idade.
Acontecimentos…

Novo Mundo: seres verdes de plástico, em filmes dos anos 80. Como quem vê a cúpula do Palácio de Cristal, qual nave aterrada num jardim.
A televisão desmorona ainda mais o que sobra da minha atenção.
E ainda assim não é a tristeza que me consome mas o cansaço.
E entristece-me que deseje o sono mais que a tua companhia.

Onde está a minha revolta? Não existe, desistiu.
Quase rosno, embora grite em silêncio por ajuda. É a isto que se chama orgulho?
Não grites pois o eco perder-se-ia em montanhas, volátil. Como a vida é tão volátil.
Quase rezo.

Esvaziei-me de chorares mas também de gargalhadas. Tornei-me num fastidioso ser agradecido pelo fim.
Pergunto-me se ainda sou eu.
Vamos ao cinema para termos um pretexto para namorar.
Para darmos beijos enquanto passam as letras pretas.

Friday, August 24, 2012

Zilda Clara Marinho, Post Morten TOMO2




Encontrei três coisas nos teus haveres: contas, postais da tua Mãe Rosalina e uns óculos da RTP no seu primeiro filme a 3D. 

Nunca me tinhas falado da tua Mãe, nem nunca imaginei que tivesses gostado tanto do filme da RTP. Das contas sim, passavas a vida a fazê-las.

Tens o preço da carne, do arroz, das batatas, da luz, do bilhete de comboio… tudo, tudo, tudo da tua vida, em escudos, somado em folhas intermináveis juntas por elásticos apodrecidos.

Numa das cartas, um rapaz escreve à tua Mãe com ciúmes de outro. Não sei qual acabou por ser o teu Pai.  Havia mais uma carta, a encomenda do armador para a lápide da tua mãe.

É curiosa que coscuvilho os teus últimos pertences… coisa que não se admite a ninguém.

Como é que é possível que tenhas guardado as contas dos anos setenta? Também guardaste os desenhos que te fiz. Três. E o santinho da comunhão do Miguel.

Havia uma Nossa Senhora de Fátima um bocadinho feiosa embrulhada em papel de cartão. Fiquei com ela. 

Não encontrei amores da tua vida. Parece que os limitaste à tua Mãe e a nós. Espero que tenha valido a pena. Ou se não valeu, já passou.

Resolvi guardar as cartas da tua Mãe. Para te dar continuidade. Pois é a única forma que vejo de o fazer. Mais uma fotografia tua, um dedal e os teus brincos.

A tua casa está no mesmo sítio onde não ía há mais de 20 anos. Toda branquinha com uma risca verde bem pintada… como que de fresco.  

Mas o jardim é um matagal. Centenas de ameixas deliciosas caíram no chão e esborracharam-se e julgo que só de galochas se consegue entrar… ou de tacões de agulha que evitem o dito fruto. 

E a receber quem passa, as rosinhas de Santa Teresinha, que quase me deixam de lágrimas nos olhos. Eram as rosas que me oferecias.

A tua demência chegou antes da minha maturidade, e como o lamento.

Sunday, July 29, 2012

hospedaria NOVO MUNDO e os meus dois amores



É nessa ruela escura ou amarela dos candeeiros da baixa que está a hospedaria Novo Mundo.
O frio corta-me os pés e as tuas patas arranham-me as pernas.
Naquele beco misteriosamente encantado pela meia luz tenho sempre vontade de entrar… porta fechada… e de ver o outro lado.
Rodeada de orquídeas e de coachares. Viajo pela curiosidade. Então contemplo montanhas com um copo de vinho branco.
Será onde vão as prostitutas da baixa? Ou viajantes de pé descalço… calçados de botas velhas porque está frio.
Pára de me morder os dedos dos pés que estão estragados e doridos. Cobre-me antes de beijos.
Baratas no chão não incomodam na Ásia. Becos e etc… E luzes foleiras por amarelada luz ou néons demasiado azuis. Adivinha-se uma recepção tacanha com balcão de couro coçado.
Estico o cabelo ao espelho e pinto os olhos de preto como que a afugentar espíritos. Mas na igreja não consigo repetir as palavras. E apercebo-me que não consigo… ser religiosa… e queria tanto…
Corta-me queijo amor com compota de morango feita pela minha Mãe para o meu Pai. E dá-me carinhos, acaricia o meu cabelo de olhar meigo para mim. Como se nos tivéssemos conhecido há pouco… e eu tivesse uma flor para ti.
Deste-me um colar de contas de plástico verdes… ainda estão ali, num copo, à espera que eu as enfie num fio novo.
E tu dormes no meu colo e eu não me mexo pois este momento é tão imensamente especial… até porque vais crescer e não vais caber mais aqui… serei eu no teu colo.
No Novo Mundo serias um vadio que cheira as beiras das calças e que foge escorraçado por uma vassoura cheia de rastas, noite cerrada que me fechas em casa .
Bebé querido que já pesas tanto e te contorces mas que és o meu ursinho de pelúcia. Vou entrar no escuro e não sei o que sairei de lá.
Mas dormiria no Novo Mundo se me perdesse por aí.